Reproduzimos na íntegra texto de Jorge Luiz Souto Maior
No primeiro dia da presente greve da USP, 27 de maio, manifestei-me no
sentido de que o debate público iniciado entre o atual e o ex-reitor, quanto às
responsabilidades pelo déficit orçamentário, visava unicamente “inibir a
compreensão de que o reajuste zero está ligado, de fato, ao percurso histórico
em prol da privatização da Universidade” e que “os últimos passos em direção da
privatização” seriam “o sucateamento das contas e o reajuste zero”[1].
Pois a prova está aí:
deflagrada a greve, a direção da universidade intencionalmente manteve-se
intransigente e se negou ao diálogo, apostando na continuidade da greve e no
aprofundamento da crise, para, mediante aparições na grande mídia, criar na
população uma reprovação aos direitos dos servidores, acusando-os de serem
privilegiados e os únicos responsáveis pelo estágio letárgico da universidade e
para, ao final, apresentar um projeto que tem como propósitos claros a
precarização das condições de trabalho e a eliminação da resistência sindical
dos trabalhadores, sendo certo que os servidores, ao longo dos anos, com sua
mobilização política, junto com os estudantes, constituíram os maiores entraves
aos projetos privatizantes que têm surgido na universidade, notadamente desde a
criação das fundações privadas a partir de 1980, que proliferaram na década de
90[2].
A questão, ademais, já não se trata de uma avaliação indiciária, pois o
reitor, em 29 de junho, quando a greve estava completando pouco mais de 30
dias, expressou sua intenção de forma bastante clara em um veículo de grande
circulação ao responder a pergunta, “O que é preciso para a USP implantar o
modelo que privilegia a meritocracia?” Disse o reitor: “Isso depende de
questões políticas e de leis federais. Mas, internamente, é preciso abandonar a
dinâmica de sindicalismo na vida universitária. Não é fácil dar esse passo. Mas
ele é essencial e já foi dado em outros países.”
E foi além,
manifestando-se no seguinte sentido:
Outra
questão deriva do fato de as universidades brasileiras enfrentarem enormes
dificuldades de gestão. Seria muito melhor se houvesse um orçamento anual
definido e a prerrogativa de contratar ou demitir de acordo com o desempenho.
Porém, o foco na qualidade e na meritocracia é algo estranho à administração do
ensino superior no Brasil.
A
estabilidade precoce de professores e funcionários paralisa as coisas. Isso não
existe em nenhum outro lugar do mundo.
O reitor deixou
evidenciado, portanto, desde então, que o plano estava traçado. Esse plano, a
propósito, é exatamente o mesmo que foi levado a efeito pelo governo do PSDB,
quando atuava no Planalto central: redução de direitos trabalhistas e eliminação
das resistências sindicais. No âmbito da administração pública, o governo do
PSDB, na década de 90, buscou, claramente, a redução do número de servidores
para favorecer ao processo de privatização, tendo se utilizado em larga escala
de incentivo a aposentadorias e Planos de Demissões Voluntárias (PDV),
acompanhados da retração de novas contratações, sendo que a continuidade dos
serviços das entidades não privatizadas se fez, posteriormente, pela
utilização, mesmo que ilegal, da terceirização. O que se vê hoje nos
Ministérios em Brasília é a utilização desmedida da terceirização (há órgãos
que possuem mais terceirizados que servidores efetivos, realizando todo tipo de
atividade).
Os argumentos e a
estratégia utilizados pelo reitor da USP são idênticos aos que foram
apresentados à época com a diferença de que agora o que se almeja é a
destruição do caráter público da entidade de ensino que dizem ser a de maior
reputação da América Latina, sob o retórico argumento de que ela podia ser
ainda melhor.
Os tempos, no entanto,
são outros e a estrutura jurídica atual traz muitos empecilhos ao efeito
pretendido. A ordem jurídica vigente, cumpre esclarecer, foi fruto de uma forte
resistência à derrocada dos direitos trabalhistas que se pretendia realizar na
década de 90, sobretudo com negociações
“in pejus” e dispensas coletivas (ainda que tenha sido implementada
parcialmente por meio de outros institutos como, por exemplo, o banco de horas)
e do reconhecimento de que as privatizações não melhoraram os serviços públicos
(muito pelo contrário) e ainda provocaram graves desvios de verbas públicas.
Aliás, a manutenção de
um Direito do Trabalho com base na predominância do interesse social e nos
Direitos Humanos, o que tem sido reforçado nos últimos anos por obra dos Tribunais
Regionais do Trabalho e, sobretudo, do Tribunal Superior do Trabalho, foi o que
impediu o Brasil de afundar na crise econômica mundial de 2008.
Além disso,
principalmente, por conta das mobilizações de junho de 2013, que têm raiz, vale
lembrar, nas mobilizações estudantis ocorridas na USP desde 2001, com
intensificação a partir de 2007,
a consciência dos trabalhadores está bem mais
consistente, assim como sua capacidade de organização e de luta, como revelaram
as diversas greves que ocorreram no país em 2014. A capacidade de
organização e de mobilização dos trabalhadores e dos estudantes na USP, além de
sua consciência, ademais, é um dado inquestionável e sequer é recente.
Como se vê, o caminho da
reitoria da USP e do governo “psdbista” do Estado de São Paulo, para a
implementação de um projeto neoliberal extemporâneo, apresenta-se, portanto,
muito mais carregado de obstáculos do que aquele que encontrou o governo FHC.
Cumpre observar, primeiramente,
que o reitor firmou compromisso de democratizar os órgãos deliberativos da
universidade, reconhecendo, pois, expressamente, o déficit democrático da
instituição. Assim, torna-se ilegítima qualquer proposta de alteração
fundamental antes de se implementar a necessária estatuinte para a reconstrução
democrática da universidade.
De todo modo, como dito,
os tempos são outros e é possível constatar que a direção da USP, ao tentar
implementar esse projeto, está muito ultrapassada no assunto Direito, e mais
especificamente, no tema Direito do Trabalho, mas sua soberba autoritária não
lhe permite perceber isso.
Recobrando os fatos que
nos conduziram até o presente momento, a direção da universidade descumpriu a
regra constitucional do reajuste salarial e insiste em acreditar que não está
obrigada a fazê-lo, mesmo que o STF já tenha se posicionado contrariamente (RE
565.089/SP, Relator Ministro Marco Aurélio de Mello). Chega mesmo a sustentar
que não tem como dar o reajuste porque o déficit orçamentário foi provocado
pela “gestão anterior”, como se a “USP do Rodas” fosse uma pessoa jurídica e a
“USP do Zago” fosse outra. Como se, aliás, a USP pudesse ser identificada à
pessoa do reitor.
Além disso, tem
sistematicamente desrespeitado o direito de greve dos servidores e professores,
recusando-se ao diálogo quando se limita a dizer que do reajuste zero não sai e
ponto. Como conseqüência, a greve se alastrou e os ânimos se acirraram, mas a
reitoria prefere não se ver no conflito e se limita a apontar a intransigência
dos trabalhadores quando estes, tentando, legitimamente, vale dizer, atrair a
direção da USP ao diálogo, passaram a promover piquetes (que são meios de
pressão resguardados aos trabalhadores pela lei de greve). E, descontente com a
atitude dos grevistas, que a direção queria que fossem pessoas silenciosas,
omissas e subservientes, como ocorre a muitos, a direção da USP passou a
agredi-los com ofensas morais, chegando ao cúmulo da ameaça do corte de ponto,
que acabou se concretizando.
Dito de outro modo: a
direção da USP não concedeu o reajuste, não dialogou e pretendeu que os
trabalhadores ficassem calados, sendo que quando estes se manifestaram quis
puni-los com o corte de salários. Toda essa perversão da ordem jurídica, que se
instaurou para tentar anular o direito constitucional de greve e aniquilar a
dignidade dos servidores e professores, foi muito bem explicada aos
representantes da USP pelo Desembargador David Furtado Mereilles, na audiência
realizada no TRT da 2ª. Região, no dia 27/08/14 (Processo
1001167-68-2014-5-02-0000).
E a direção da USP,
acostumada a fazer pouco da ordem jurídica, nem se abalou com a determinação de
que pagasse imediatamente aos trabalhadores os salários cortados, descumprindo
deliberadamente a ordem judicial, fingindo que tal ordem não lhe fora dada. Foi
preciso nova (e importante) decisão do TRT da 2ª. Região, desta feita da Juíza
Relatora, Fernanda Olívia Cobra Valdívia, da Seção de Dissídios Coletivos, para
que a USP tivesse a certeza de que deve restituir aos servidores os salários
cortados, em 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de multa pecuniária.
Olhando para essas
decisões vale o registro de que o Judiciário pode ser mesmo uma instituição de
relevo na reconstrução democrática do país, rechaçando ímpetos autoritários dos
demais poderes, como demonstrou no Rio de Janeiro e em São Paulo com a
concessão de liberdade aos presos políticos e com a reversão, para 10
trabalhadores metroviários, da justa causa que lhes fora arbitrariamente aplicada
(vide decisão do juiz Thiago Melosi Sória, da 34ª. Vara do Trabalho da 2ª.
Região).
Na questão do corte de
ponto de servidores em greve registre-se a postura atual do Supremo Tribunal
Federal, valendo o destaque também para diversas decisões da Justiça do
Trabalho que vêm negando o uso de interditos proibitórios como arma para coibir
piquetes.
Em suma, com certo
otimismo, pode-se vislumbrar que esteja ocorrendo um movimento em prol da
efetivação dos direitos humanos no país, com vistas à consolidação da
democracia. Mas enquanto esse sopro de eficácia do Estado Democrático de
Direito Social se experimenta na sociedade, a USP continua sendo regida por um
estatuto que não possibilita uma gestão democrática, como determina a
Constituição Federal (art. 206, inciso VI), e que se vê amparado por um
Estatuto Disciplinar, de 1972. É inconcebível que a sociedade brasileira tenha
passado por uma constituinte com o objetivo de elaborar o instrumento jurídico
responsável pela superação das estruturas autoritárias, a Constituição de 1988,
e a USP tenha um instrumento disciplinar que estabelece que alunos possam ser
expulsos por práticas contrárias à moral e aos bons costumes e que
trabalhadores possam ser dispensados por justa causa por meramente aderirem a
uma greve. Foi, ademais, em decorrência dessa falência institucional que o
antigo reitor conseguiu promover a dispensa arbitrária de 270 trabalhadores (e
muitos já foram reintegrados por decisão judicial); utilizou ações judiciais
como forma de atrair força policial ao campus e com ela “dialogar” com os
estudantes; firmou convênio com a PM para manter os estudantes sob constante
vigilância; criou uma “sala de crise”, responsável pela propagação de
espionagem na USP; instaurou, em grande número, processos administrativos e até
criminais contra estudantes e dirigentes sindicais; interpelou judicialmente
toda diretoria da AUDSP por declarações dadas em jornal; deixou sem apuração
efetiva o crime ecológico ocorrido na EACH; autorizou a confecção de placa na
USP relativa ao “Monumento em Homenagem a Mortos e Cassados na Revolução de 1964” ; e gerou o atual
déficit orçamentário promovendo gastos com a construção de prédios e na
estruturação de escritórios de representação em Cingapura, Boston e Londres...
Uma falência comprovada,
aliás, na própria fala do atual reitor, que era pró-Reitor à época, quando
afirma que tudo isso se fez sem que ninguém soubesse.
O atual reitor, ademais,
tem se valido da mesma falência democrática para levar adiante o projeto
privatizante. Chegou dizendo que era homem do diálogo, mas, apoiando-se na
lógica antidemocrática que o conduziu ao posto, logo resolveu cortar bolsas;
vetar o reajuste constitucional dos servidores, judicializando o conflito que
foi gerado pela sua atitude de modo a tentar impor silêncio aos descontentes;
trazer mais uma vez a Polícia Militar para atuar no Campus; promover uma
política de assédio sobre servidores em greve; ameaçar e concretizar cortes de
salários e, por fim, apresentar o plano decisivo ao projeto de privatização,
que prevê, inclusive, a desvinculação de hospitais (que cumprem papel
fundamental na formação educacional e na prestação de serviços sociais) da USP.
Voltemo-nos à questão
das propostas do PDV e da redução salarial, que se inserem no mesmo contexto do
descumprimento reiterado da ordem jurídica pela USP e que motivarão,
certamente, nova necessidade de interferência do Judiciário trabalhista para
garantir que a Constituição tenha incidência também no âmbito da
universidade...
A direção da USP
anunciou a aplicação de um PDV no meio de uma greve, o que, por si, torna
juridicamente inválido o plano. Esse PDV, cujas bases concretas não se conhece,
que atingiria, segundo informa a imprensa, cerca de 3.000 servidores de um
total de 17 mil, ou seja, quase 20%, representa, por certo, não apenas uma
redução de custo mas uma alteração plena no funcionamento da instituição, com
enorme prejuízo ao funcionamento da universidade e ao atendimento à comunidade universitária
e à população, e com implicações graves na rotina de todos os servidores,
gerando trabalho mais intenso, com maior ritmo e maiores responsabilidades. O
que tenta a reitoria, portanto, é vincular eventual conquista da greve, que
ocorre há mais de 90 (noventa) dias e já conta com vitórias no Judiciário, a
uma derrota coletiva da classe trabalhadora, anunciando (como de fato tem
feito) que a perda de postos de trabalho será o preço a ser pago pelo reajuste,
sendo que se pretende, também, implementar uma redução de salários, com
equivalente diminuição da jornada de trabalho, para os servidores que
permanecerem em atividade.
Ora, é evidente que a
redução de servidores implica maior sacrifício de trabalho aos que ficam, ainda
mais quando se acopla a essa redução de trabalhadores uma diminuição da carga
horária de trabalho a muitos que permanecerem trabalhando, cabendo registrar
que a proposta de PDV anunciada pela reitoria prevê que não devem ser
realizadas novas contratações de servidores até pelo menos o ano de 2018.
No contexto geral, a
medida implica precariedade e, consequentemente, maior sofrimento aos
trabalhadores, de modo a fazer com que estes debitem na conta do sindicato a
culpa por ter insistido no recebimento do reajuste salarial, o qual perderia
todo sentido, sendo que com o enfraquecimento do sindicato e o aumento da
precariedade novos reajustes muito mais facilmente deixarão de ser concedidos
no futuro.
O “Plano Zago” não prevê
apenas um PDV (Plano de Demissão Voluntária) para ajuste orçamentário. De fato,
instaura uma lógica de precarização do trabalho, para quebrar a resistência
sindical. Ou seja, em um momento no qual se exigia da reitoria a postura de
negociar com os trabalhadores, o que esta propôs foi uma discussão pública de
um plano que menospreza a presença dos servidores na universidade, que
desconsidera a sua dignidade, recusando sua vinculação àquilo que o reitor
chama de “atividade-fim”, termo que, aliás, já permite antever seu propósito de
se valer da terceirização. É importante que aqueles que não aderiam a greve
percebam que a agressão feita a todos atinge!
A postura da reitoria
não é apenas autoritária, ela representa, isto sim, a posição ideológica do
PSDB, refletindo, também, de certo modo, a cultura escravagista de parte da
sociedade brasileira, de ver o sindicato ou, mais precisamente, os
sindicalistas, os grevistas, como baderneiros, agitadores, comunistas. Resgata
um momento da vida nacional quando a Polícia possuía um “Setor Trabalhista”
para abafar greves e a atividade sindical era controlada pelo Estado.
O problema para a
direção da USP é que, goste ela ou não, a ordem jurídica constitucional,
consagrada em 1988 como resultado das greves que ocorreram no final da década
de 70 e de tantas outras que se sucederam ao longo da história do Brasil, foi
obrigada a fixar, e o fez muito claramente, que a organização do modelo de
sociedade capitalista se dá pelo reconhecimento da importância do capital e do
trabalho, garantindo aos trabalhadores os direitos de reunião, de manifestação
política, de greve, de luta por melhores condições de trabalho, sendo que o
próprio Estado, na condição de empregador, deve se relacionar com os servidores
respeitando-os como classe trabalhadora que são.
Assim, mesmo que não
seja do agrado dos administradores autoritários da USP, os trabalhadores têm
direito de se organizar em sindicato e de defender os seus interesses. E ainda
que lhes gere repulsa, esses administradores devem dialogar e negociar com os
trabalhadores, não por um favor ou benevolência, mas por uma obrigação
constituída juridicamente.
E é exatamente neste
mesmo sentido que mais uma vez a direção da universidade desconsidera a ordem
jurídica ao instituir, unilateralmente e em meio a uma greve, um plano que no
fundo representa novo atentado aos direitos trabalhistas, desconsiderando a
obrigatoriedade de negociação com o sindicato para estabelecer providências de
redução de custo, como a redução de salários com a diminuição da carga horária
e a dispensa coletiva de trabalhadores.
Chega a ser mesmo
assustador ver o reitor dizer em vídeo institucional que a USP vai promover a
redução de salários, mediante acordos individuais com os trabalhadores que
aceitarem diminuir a jornada de trabalho. Ora, não existe permissivo de ajuste
individual para esse efeito, como assente em toda doutrina e jurisprudência
trabalhista, seguindo os parâmetros do art. 7º da Constituição, que exige, para
tanto, a realização de negociação coletiva. Os acordos individuais para esse
fim são nulos de pleno direito (art. 9º. da CLT) e, certamente, resultarão em
revisões judiciais futuras, com condenações que colocarão em maior risco ainda
as previsões orçamentárias da universidade.
Mesmo a Lei n. 11.101/05,
que se inseriu na ordem jurídica para atender ao interesse econômico das
empresas, criando o instituto da recuperação judicial, prevê que na recuperação
de empresas em dificuldades deve-se, prioritariamente, atender ao postulado da
preservação dos empregos. O art. 47 da lei é claro neste aspecto: “A
recuperação judicial tem por objetivo viabilizar
a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de
permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos
trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.” (grifou-se)
Além disso, os meios de
recuperação dos problemas econômicos das empresas, no que se referem às
relações de trabalho, que não incluem, obviamente, a cessação coletiva de
empregos, estão vinculados à negociação com os trabalhadores, conforme previsto
no inciso VIII, do art. 50, do mesmo diploma legal: “redução salarial,
compensação de horários e redução da jornada,
mediante acordo ou convenção coletiva” – grifou-se.
Além disso, a
jurisprudência trabalhista atual, que começou a ser construída por ocasião da
crise de 2008 para impedir que as ameaças de desemprego fossem utilizadas como
argumento para a diminuição de direitos, já se posicionou claramente no sentido
de que as dispensas coletivas, que requerem comprovação dos motivos técnicos e
econômicos por parte dos empregadores, devem ser definidas em negociação
coletiva com o sindicato dos trabalhadores, considerando exercício abusivo do
direito a dispensa que não atenda a essa condição. Vide, a respeito: TRT 2ª R.,
SE 2028120080000200-1, AC . SDC
00002/2009-0, j. 22.12.08, Relª Juíza Ivani Contini Bramante, LTr 73-03/354; TRT
15ª R., DC 309-2009-000-15-00-4, AC .
333/09, DO de 30.03.09, Rel. José Antonio Pancotti, LTr 73-04/476 e PROCESSO Nº
TST-RODC-309/2009-000-15-00.4, Rel. Ministro Maurício Godinho Delgado.
Alguém poderá argumentar
que o PDV não configura uma dispensa coletiva, não se inserindo, pois, no mesmo
contexto. Mas, concretamente, o PDV não é outra coisa senão uma fórmula de
incentivo à redução de pessoal, para atender a uma necessidade econômica do
empregador, como, aliás, a própria USP já reconheceu ao anunciar o plano, cujas
bases, repita-se, ninguém conhece e não foram discutidas. Fato é que o PDV não
se trata de um prêmio aos trabalhadores e sim de um corte de pessoal, com
graves repercussões na dinâmica coletiva de trabalho, como revela a seguinte
Ementa:
A preliminar
é totalmente desprovida. A mera adesão ao programa de Incentivo à Demissão
Consentida, que de espontânea não tem nada, haja vista o notório intuito
da reclamada em promover o corte de pessoal através deste “incentivo”, não
induz a concluir que o reclamante abriu mão de todos os direitos alusivos ao
extinto contrato. (Ac. 50962/98, TRT 15a Região. 2a
T. RO 25612/97, Rel. Juiz Emílio Alves Ferreira Júnior, DOESP 23/02/97) –
grifou-se.
E quando se fala em
negociação coletiva não é da simples aquiescência formal do sindicato, induzido
a aceitar as condições impostas a partir de uma lógica do mal menor ou do poder
econômico e político do empregador, que se fala.
O ordenamento jurídico, tentando contribuir com a recuperação econômica
das empresas e incentivar a produção capitalista sem desconsiderar a posição
social dos trabalhadores, traz remédios totalmente excepcionais e temporários,
que não legitimam a aniquilação de empregos ou imponham sofrimentos aos
trabalhadores. A lógica é a de que ocorram sacrifícios recíprocos aos
empregados e ao empregador, pressupondo-se que esses remédios vigorem,
necessariamente, por prazo determinado, vez que seu propósito é o da retomada
da condição econômica anterior e não o de eternizar o retrocesso (desautorizado
pelo “caput” do artigo 7º., da CF e pelos princípios consagrados na teoria dos
direitos fundamentais).
O pressuposto jurídico constitucional, nunca é demais lembrar, é o da
melhoria da condição social do trabalhador, alicerçado nos princípios
fundamentais da República da valorização social do trabalho e da proteção da
dignidade humana[3].
Nesta perspectiva, qualquer instrumento normativo que se volte à simples diminuição
de direitos trabalhistas não tem valor jurídico. Assim, apenas em última instância
é que se poderá chegar a uma negociação autorizadora de redução de salários ou
de dispensas coletivas – que jamais deve ser considerada como algo normal, vez
que se trata de um grave problema social.
Do ponto de vista, estritamente jurídico, para se alcançar a validação de
uma negociação neste sentido é preciso que: esteja inserida em um contexto de
reestruturação e de redirecionamento da empresa; implique sacrifícios
recíprocos, impondo reduções, na mesma proporção, a diretores, sócios e
acionistas; seja baseada em necessidade econômica devidamente
comprovada, não induzida por práticas reiteradas de desrespeito ao ordenamento
jurídico ou atos irresponsáveis; esteja acompanhada de plano que estabeleça uma
projeção de recuperação do nível de emprego anterior em prazo determinado; seja
autorizada por assembléia geral da qual participem também os empregados não
sindicalizados; respeite de forma plena o direito de informação; seja precedida de estudos concretos acerca da viabilidade da
empresa e da eficácia econômica da medida adotada; seja, enfim, baseada em boa-fé
e confiança.
Ou seja, no caso específico da USP é totalmente ilegal – e mesmo imoral –
pretender solucionar os ditos problemas orçamentários da instituição impondo,
unilateralmente, sacrifícios apenas aos trabalhadores. Uma política ética e
juridicamente válida de sacrifícios de salários e de postos de trabalho, caso
fossem efetivamente necessários (o que não se acredita), começaria com cortes
nos denominados “supersalários”[4],
passando por toda a coletividade, e não se voltando, de forma exclusiva,
exatamente contra àqueles que, no geral, são os que de fato dependem do salário
que recebem da USP para sobreviver (e que por isso mesmo são os que se opõem de
forma mais direta e eficaz contra o sucateamento da instituição).
Lembre-se, com efeito,
da previsão contida na Lei n. 4.923/65 (ainda em vigor, mesmo que parte da
doutrina assim não reconheça, pois não contraria a Constituição, muito pelo
contrário), que fixa as condições para uma negociação coletiva que preveja redução
de salários: redução máxima de 25%, respeitado o valor do salário mínimo;
necessidade econômica devidamente comprovada; período determinado; redução
correspondente da jornada de trabalho ou dos dias trabalhados; redução, na
mesma proporção, dos ganhos de gerentes e diretores; autorização por assembléia
geral da qual participem também os empregados não sindicalizados.
Resta claro, portanto, que
o que o ordenamento jurídico trabalhista preserva, essencialmente, é o emprego
e não o desemprego. A decisão de conduzir pessoas ao desemprego, mesmo quando
economicamente incentivadas a fazê-lo por ato que parece voluntário, implica um
problema de ordem social, que gera também, como dito, várias repercussões na
estrutura de trabalho daqueles que continuam em atividade. A cessação
coletiva de vínculos de emprego por meio de um PDV, portanto, não diz respeito apenas
ao interesse econômico do empregador.
Tratando-se de uma
cessação coletiva, a iniciativa do empregador deve basear-se em real
necessidade, devidamente comprovada, sendo precedida de um Plano de
Recuperação, do qual participem também os trabalhadores e o próprio Estado. A
prática do PDV, elaborado sem uma base de estudos de impacto estrutural e
econômico, sem ser precedida da necessária negociação com os trabalhadores,
representa a negação do dever social do empregador, sendo, portanto, ilegal.
Mesmo que a decisão de
adesão seja individual e voluntária, a negociação coletiva no PDV é essencial
porque o Plano deve regrar a situação futura dos trabalhadores que permanecem
em atividade, conferindo-lhes uma política salarial, proteção contra assédio
pela maior demanda de trabalho, garantia de emprego, assim como proteção da
categoria, que pode ser atingida, por exemplo, pela terceirização. Não são
apenas os interesses dos demissionários e do empregador que norteiam a
compreensão jurídica sobre o PDV. O Direito do Trabalho, voltado aos projetos
da busca do pleno emprego e da melhoria das condições sociais e econômicas dos
trabalhadores, impõe que se preservem também os interesses dos trabalhadores
que permanecem em atividade, sobretudo no que tange à sua atuação sindical.
A ordem jurídica
trabalhista rejeita a ideia de que o PDV possa servir como mero exercício do
poder econômico do empregador, levando os trabalhadores a uma decisão
impulsionada pela ilusão. Sabe-se que inúmeros são os casos de trabalhadores
que se envolveram na aventura do “empreendedorismo” com o valor recebido no PDV
e que depois foram à bancarrota, sobretudo por conta da dificuldade de
reinserção no mercado de trabalho, sendo que o problema se agrava quando se
prenuncia na realidade brasileira o advento de uma recessão econômica.
A proposta da reitoria
da USP, portanto, é também irresponsável quanto ao que se almeja para o futuro
de trabalhadores que durante anos prestaram seus serviços à universidade.
O mais grave, porém, é
apresentar a proposta no contexto de uma greve, retirando os trabalhadores da
ação coletiva, de modo a reforçar, inclusive, a lógica da ausência de diálogo
com o sindicato ou mesmo com as demais instituições estatais interessadas na
preservação dos empregos e na contenção dos problemas sociais. Nesse sentido, a
atitude da USP pode ser considerada até mesmo uma ofensa ao Poder Judiciário trabalhista,
a quem a própria USP, quando judicializou a discussão, transferiu a tarefa de
intermediar a negociação e de solucionar o conflito.
Acrescente-se que em se
tratando de cessações coletivas a avaliação dos interesses individuais em jogo
não é delimitadora da questão, tendo a jurisprudência fixado o pressuposto de
que a cessação coletiva de relações de emprego não pode ser concretizada sem um
diálogo com a sociedade, ou, no mínimo, com os interessados diretos, os
trabalhadores, representados por seu sindicato.
Do ponto de vista do
interesse social, o que se almeja é a proteção da instituição de ensino
público, que estaria em sério risco com a comprovação, mesmo posterior, de que
o PDV foi utilizado para implementar a terceirização e inibir a ação sindical
dos trabalhadores, como, aliás, já adiantou o próprio reitor, vez que isso,
reforçado pela ausência de negociação coletiva, geraria várias declarações
judiciais de nulidade do Plano, com reintegrações e indenizações individuais e
coletivas, minando ainda mais as forças econômicas da instituição.
Fato é que não cabe à
universidade entrar em uma aventura jurídica desse porte apenas para satisfação
da indisposição pessoal do reitor com o sindicalismo ou mesmo para a
implementação de um projeto neoliberal retrógrado, em pleno desacordo com a
ordem jurídica trabalhista atual.
Nesse contexto, o mínimo
que se espera, enquanto a estatuinte não vem, é que o Conselho Universitário
tenha a responsabilidade de defender o interesse da USP e de respeitar a ordem
constitucional e os trabalhadores, até porque no futuro não poderá dizer que
não sabia o que estava acontecendo.
São Paulo, 1º. de setembro de 2014.
(*) Professor
livre-docente da Faculdade de Direito da USP.
[2]. Para se
ter uma vaga ideia do que isso representa, em 1998 as fundações ligadas a
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP) – FIA,
Fipecaf e Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) – arrecadaram R$
134,52 milhões, que é quase sete vezes a dotação orçamentária da FEA no mesmo
período, de R$ 20,53 milhões, sendo que no mesmo ano a verba total da USP foi
de R$ 842,25 milhões (Fundações privadas
desvirtuam o caráter público da USP. http://www.anovademocracia.com.br/no-4/1323-fundacoes-privadas-desvirtuam-o-carater-publico-da-usp)
[3]. “Art.
1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: (....)
III - a dignidade da pessoa
humana;
IV - os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa;”
[4].
http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,supersalario-na-usp-faz-tribunal-rejeitar-contas,1154681.
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